quinta-feira, 20 de junho de 2013

Eutanásia e outros conceitos: A Ética e o Direito no final da vida

Nos temas afetos ao direito à vida, muito se discute sobre a existência de um suposto direito de matar por compaixão, matar para livrar da dor o doente incurável, matar quem suplica a morte. A eutanásia é um dos problemas mais difíceis do Direito Penal, sobretudo por não se restringir a esta área do conhecimento. Aqueles que a defendem desejam combater o poder que o avanço tecnológico veio conferir aos Médicos no controlo do próprio processo de morte do indivíduo. A eutanásia apresenta-se, assim, como um protesto, uma forma de assegurar ao doente o direito de decidir se quer e como quer utilizar a tecnologia a seu favor, em reforço da sua autonomia pessoal.
 
Mas será que a autonomia individual enquanto valor fundamental implica que uma pessoa capaz possa dispor livremente da sua vida? Quais são os limites da autonomia do doente? Será lícito que conte com a ajuda de outra pessoa para tirar a sua própria vida?
 
É de facto paradoxal a justificação teórica da prática da eutanásia, sobretudo tendo em conta que, historicamente, nunca esteve ligada à questão da autonomia. A vasta literatura atribui a origem da eutanásia aos vocábulos gregos eu (boa) e thanatos (morte), querendo expressar morte piedosa, morte sem dor, morte sem sofrimento. Com efeito, traduz-se num quase deixar morrer naturalmente. A eutanásia foi entretanto perdendo esse sentido, passando a ser entendida como o método ou ato que se destina a provocar a morte do doente desesperado, com fundamento no alívio do seu sofrimento (justificação médica) e no respeito pela sua autonomia pessoal (justificação não médica).
 
A eutanásia, na verdade, é a ação ou omissão pela qual o Médico põe termo à vida do paciente gravemente doente, a seu pedido ou para libertá-lo da dor e do sofrimento insuportável, visando possibilitar-lhe uma morte humanamente digna. É o que se designa, mais atualmente, de homicídio por compaixão ou de ajuda para morrer, a fim de eliminar toda a dor física ou psíquica.
 
O fato da eutanásia implicar a intervenção de um Médico não é desprovido de sentido. Aliás, a eutanásia deve ser compreendida como um ato médico, ou seja, como um ato próprio e restrito da Medicina. Isto porque a eutanásia ou qualquer outro tipo de ajuda para morrer pressupõe a avaliação médica sobre a irreversibilidade do quadro clínico que conduzirá à morte, sobre a legitimidade do pedido do paciente ou de seus familiares, bem como sobre os métodos a serem adotados, de modo a que o processo se desencadeie com segurança e da forma mais confortável para o doente.
 
Mas se por um lado a eutanásia é a antecipação da morte de quem definha, por outro lado a missão da Medicina é lutar contra a doença. Esta dicotomia provoca uma grande tensão em torno do assunto, uma vez que a manutenção da vida a todo o custo pode conduzir a um efeito tanto ou mais criticável, que é a chegada da morte com notável sofrimento e sem vantagens para o paciente. É neste contexto que se coloca a grande discussão entre o prolongamento artificial da vida e o direito de morrer dignamente ou, como preferir, o direito de viver a própria morte, acirrando ainda mais o debate sobre os limites que envolvem o fim da vida e a real dimensão da tutela jurídica do doente.
 
Com efeito, os defensores da eutanásia negam toda a espécie de conduta médica despropositada. Nesta medida, diante dos inúmeros relatos de casos judiciais onde se discute o direito de morrer dignamente – seja reconhecendo-o previamente, seja perdoando aquele que deu a morte a pessoa enferma – pode parecer equivocado que poucos países aceitem e pratiquem a eutanásia. Isto porque, é muito comum o termo eutanásia ser utilizado de forma imprecisa.
 
Muitas vezes, a eutanásia – ato pelo qual alguém retira a vida a outra pessoa – é referida indistintamente como suicídio assistido – ato pelo qual alguém ajuda terceiro a pôr termo à sua própria vida. Um exemplo clássico de suicídio assistido é o do Médico de Detroid (EUA) Jack Kevorkian, que ficou conhecido nos anos 90 como Dr. Morte, por ter criado várias “máquinas de suicídio” e instalado em sua carrinha Volkswagen, para onde levava os pacientes.
 
Outras vezes, confunde-se a eutanásia com a distanásia, que é o seu inverso, a morte protelada; e a estas duas ainda se contrapõe a ortotanásia, que é a morte no tempo certo. No caso da ortotanásia o Médico não interfere no processo natural da morte, nem para antecipá-lo nem para adiá-lo. Mantém apenas os cuidados básicos no doente. Deste modo, a prática da ortotanásia é largamente aceita tanto pela Ética médica como pelo Direito. É, em verdade, a restrição do uso de certos recursos por serem considerados desproporcionados e, portanto, medicamente inadequados.
 
Ainda, não raramente confunde-se o significado da ortotanásia com o da eutanásia passiva, obscurecendo ainda mais o sentido dos debates, na medida em que coloca no mesmo plano todo o tipo de abstenção de tratamento. Trata-se, na realidade, de uma imprecisão conceitual, pois na eutanásia passiva suspende-se deliberadamente as medidas de suporte vital indicadas para o caso, enquanto na ortotanásia suspende-se as medidas que perderam sua indicação por resultarem inúteis para o doente.
 
É importante ter presente que a eutanásia é sempre concebida como uma atuação, positiva ou negativa, dirigida a provocar a morte de outra pessoa. Daí que a eutanásia de fato corresponde ao crime de homicídio, pois a conduta do agente resulta na morte de alguém. Mas a distinção entre eutanásia ativa e passiva – ou a diferença moral entre matar (killing) e deixar morrer (allowing to die) – não é tão linear quanto parece. Se assim fosse, então o Médico que desliga a máquina que mantém o paciente vivo, mata-o; enquanto aquele que recusa-se a colocar o doente numa máquina de suporte de vida, simplesmente deixa-o morrer.
 
Tradicionalmente, aceita-se valorações diversas para a eutanásia ativa e passiva. Ao mesmo tempo em que não se aceita acabar intencionalmente com a vida de uma pessoa, aceita-se que, em certos casos, se deixe de socorrer a medidas para manter a vida. Tudo dependerá das circunstâncias concretas de cada caso e dos limites que se possa estabelecer, embora não se deva ignorar que a eutanásia passiva todos os dias seja praticada nos hospitais do mundo inteiro.
 
No entanto, ao contrário do que pode parecer, a eutanásia passiva não é lícita, na medida em que deixa morrer o paciente por omissão de cuidados médicos. É neste contexto que se discute uma das maiores controvérsias em torno do assunto, referente ao tratamento jurídico que deve ser dispensado à conduta do Médico que desliga os aparelhos de suporte de vida do doente, não consideravelmente em final de vida. Parte da doutrina considera que consiste numa conduta ativa e via de regra passível de punição; mas a corrente maioritária inclina-se para concebê-la como uma conduta passiva, de interrupção técnica de tratamento e, portanto, de omissão de uma atividade de esforço adicional ou de ulterior tratamento.
 
Apesar de ilícita, a conduta do Médico poderá ficar impune, se fundada no consentimento do doente para a interrupção do tratamento. Ou seja, a eutanásia passiva será legítima se apoiada na vontade do paciente recusar o tratamento médico, mesmo que ponha em risco a sua própria vida ou que a omissão seja a causa suficiente de sua morte. Tal direito enquadra-se na dimensão da própria dignidade da pessoa humana, como reza a Carta dos Direitos das Pessoas Doentes, aprovada pela Organização Mundial de Saúde em 18 de Junho de 1996.
 
Assim, o consentimento informado funciona como o limite da obrigação jurídica de curar, mas é necessário que a recusa do tratamento não padeça de vício relevante, como quando o doente não tem o pleno conhecimento da situação em que se encontra. No caso dos pacientes inconscientes de modo irreversível ou que já não estão em condições de decidir de forma responsável, é necessário recorrer-se à sua vontade presumida, ou, ainda, quando se está diante de doentes menores, o consentimento terá que ser dado pelos seus representantes legais.
 

3 comentários:

  1. Voltei novamente a ler o seu post!
    Consegui ler com mta mais clareza do que inicialmente, e de facto está bastante elucidativo! 

    Tinha a eutanásia, como ideia pré concebida que se tem de morte assistida, não tendo conhecimento de que existiam vários tipos a ela associados.

    Tenho algumas dificuldades em compreender a diferença entre eutanásia passiva e ortotanásia, por entender que de alguma forma consequentemente, uma leva à outra, Em ambos os casos são cessados quaisquer tipos de tratamentos ou procedimentos que prolonguem a vida do doente sem hipóteses de cura.

    Mas, tal como referi inicialmente, tinha a eutanásia como ideia pré concebida de morte assistida, em que uma terceira pessoa provoca a morte do doente a pedido do mesmo, sendo que legalmente (em alguns países em que a eutanásia é ilegal, caso de Brasil e Portugal) isso terá consequências para o agente da acção.

    No entanto, percebi tb que existe a situação do suicídio assistido, em que uma terceira pessoa “apenas” auxilia a morte do paciente, como refere no post o exemplo do Médico de Detroit, Dr. Jack Kevorkian, sendo que neste caso o doente pratica ele mesmo o acto que conduz à sua morte.
    De qualquer forma, (entendi que) ambas as situações são consideradas eutanásia activa, portanto são as duas ilegais. Ainda assim pergunto, as consequências serão as mesmas, para quem comete o acto vs quem auxilia/assiste? Não existe mesmo distinção em questões de direito penal?

    Queria mais uma vez agradecer pelo post, tenho mto interesse por estes temas controversos, em que tudo me parece tão óbvio, ainda assim tão complexo.
    Particularmente, entendo agora que passei por duas situações em que a eutanásia passiva e/ou ortotanásia fizeram parte. Gostaria de comentar que é mto difícil decidir entre terminar com o sofrimento de quem já mto sofreu e o egoísmo da família que desespera em não querer deixar partir quem ama.
    Inevitalvemente, acabei por perceber que o maior acto de amor, seria apenas acompanhar e deixar partir quem já não conseguia mais lutar.

    Bjs e obrigada!

    ResponderEliminar
  2. Cara Joana! Desculpa a demora em responder-lhe, mas estive de fato ausente por 1 semana. E obrigada, de coração, por acompanhar o blog, comentar e gostar de nossas conversas. Bem, com relação ao tema "eutanásia", é realmente difícil compreender as várias nuances que o tema pode assumir; mesmo entre os estudiosos do assunto, há imensas dúvidas e nem sempre há consenso. Portanto, suas questões são todas pertinentes. Mas há que se esclarecer o seguinte:

    1. Há diferença entre eutanásia passiva e ortotanásia. Isto é importante porque as consequências também são diferentes. Como disse, na eutanásia passiva o Médico cessa o tratamento do doente, quando este ainda é considerado "indicado". Via de regra, a conduta é ilícita, a não ser que seja obrigado a abster-se a intervir (e deixa assim a sua condição de garantidor) por recusa de tratamento do doente. Há muitos desdobramentos a partir daí, mas por ora o mais importante é você compreender isto. Já a ortotanásia é lícita e aceita pela própria Igreja Católica (por exemplo), pois na verdade se trata de deixar morrer o doente de forma digna, mantendo os cuidados básicos e nada mais, suspendendo todo o tipo de tratamento considerado inútil diante da comprovada irreversibilidade do caso. Ou seja, cessa-se o tratamento por deixar de ser "indicado".
    2. De fato, a eutanásia ativa (por exemplo, a administração de uma medicação letal no doente) é crime de homicídio (matar outra pessoa) na maioria dos países. Na Europa, a Holanda foi o primeiro país a legalizar a eutanásia (o primeiro no mundo também), seguido da Bélgica. Outros países toleram a sua prática, como a Suíça e Luxemburgo, ou regulamentam a recusa de tratamento, como a Itália e Espanha. Em Portugal e no Brasil, tanto a eutanásia como o suicídio assistido são condutas criminosas; mas em Portugal o "homicídio por compaixão" é caso de homicídio privilegiado (tem a culpa diminuída), contanto com uma menor reprovação também o "homicídio a pedido da vítima" e a "ajuda ao suicídio".
    3. Eutanásia ativa e suicídio assistido não são a mesma coisa. Na primeira, o Médico atua diretamente sobre o doente; já na segunda apenas lhe presta auxílio, sendo que é o doente quem pratica o ato sobre si mesmo. Outro exemplo muito elucidativo é do espanhol Ramón Sampedro (veja o filme "Mar Adentro"). As consequências também são diferentes, sendo que, via de regra, a penalidade no segundo caso é mais branda.

    Você termina o seu comentário de uma forma belíssima. É isto mesmo, às vezes é muito difícil "desapegar", deixar partir aquele que amamos, por ser a vida já insuportável para eles. É sempre uma decisão muito difícil, daí porque considero importante poder conhecer a vontade do doente, deixar ser ele a decidir com segurança e segundo normas vigilantes.

    Para continuarmos com a nossa conversa, vou preparar um post sobre "testamento vital", que também é de suma importância para todos nós.

    Um grande beijinho e obrigada mais uma vez!

    ResponderEliminar
  3. Núbia, agradeço-lhe imenso a sua atenção e o tempo que me dispensou!
    Fiquei muito esclarecida em relação ao assunto! Já entendo perfeitamente as diferenças entre eutanásia passiva e ortotanásia; e eutanásia activa vs suícidio assistido. Fiquei curiosa em relação ao filme que menciona. Tenho comentado com algumas pessoas este assunto e de facto a maioria tb não tinha conhecimento dos vários tipos de eutanásia existentes, até mesmo alguns médicos que desconheciam a prática da ortotanásia!...
    Quero agradecer mais uma vez, fiquei mais rica pelo conhecimento que adquiri consigo!
    Beijinhos grandes!
    P.s: Fico aguardar post acerca do "testamento vital"!

    ResponderEliminar